Diário de uma Vida

 

A vida de Adrian Rodrigo

            Eu já tinha uma filha com 3 anos, outra com 11 meses, quando que por descuido engravidei. Assustada pelo fato de minha caçula ainda ser um bebê, fui me acostumando com a gravidez, principalmente porque ia sentindo a cada dia aquele serzinho crescendo e se movimentando dentro de mim. Aos quatro meses de gestação fiz a primeira ecografia, o Doutor disse: "é um menino!". Eu nem acreditava, o filho homem que eu esperava desde a minha primeira gestação. Que felicidade, finalmente estava chegando o meu “piazinho”!

            Lembro-me de minha imensa felicidade quando sai da sala de ecografia.  Percorri o caminho de volta para casa a pé com o sorriso de orelha a orelha. A partir daquele dia em diante seria só alegria, cuidar das meninas e esperar a chegada do menino; entre tantos nomes da lista escolhemos Adrian Rodrigo. A gestação ocorreu normalmente, Adrian ganhava peso e crescia naturalmente, então se completou os nove meses. No dia 14 de Maio de 2006 era dia das Mães e logo de manhã comecei a sentir as dores e as contrações, por isso decidi organizar a casa, lavar as roupas, pois o bebê estava chegando.

O dia passou e as contrações aumentavam, à tarde, meu esposo me levou ao centro médico e então o Dr. Acácio me examinou. Rapidamente me encaminharam a maternidade N. S. do Rocio, eram 19 horas; o Dr. Victor rompeu a bolsa amniótica para apressar o nascimento, eram 20 horas quando fui para a sala de parto.

O presente do dia das mães nasceu...

 Todo mês eu levava Adrian para fazer o acompanhamento de rotina com o pediatra, o Dr. Luciano sempre brincava: "esse menino vai te dar prejuízo!", pois se admirava com o crescimento saudável do menino.

Nasceram os dentinhos; aos nove meses de vida ele já engatinhava e falava um pouco, era muito ativo e inteligente. Com um ano e quatro meses ele andou e já comecei a tirar as suas fraldas; com jeitinho fomos ensinando a usar o sanitário e poucas vezes ele fazia errado. Sempre tranquilo e carinhoso, com muita facilidade de aprendizado, Adrian queria aprender tudo, tinha bom raciocínio, tudo que lhe era ensinado aprendia rápido e queria ensinar aos grandes também.

            Adrian brincava muito, adorava pegar seus carrinhos e ir brincar na terra  debaixo do sol; sempre muito organizado guardava tudo, era uma criança caprichosa. Comia sozinho aos dois anos e com seus três anos acompanhava o vovô na horta, colhendo verduras, sempre queria ajudar a carregar as coisas; ajudava o pai a consertar as coisas, sempre conversando, perguntando: "Por quê?!”. Aos quatro anos começou a ir para a escolinha, no jardim II.

            Frequentava as aulas normalmente e não tinha preguiça de acordar cedo. Contava sobre seus amigos, as brincadeiras, o que a professora falou, o menino que brigou com ele, o que aprendeu durante as aulas. Gostava de ganhar coisas novas. Obediente e inteligente era o melhor aluno da classe e sempre gostou de demonstrar suas habilidades como: subir em arvores, imitar animais e pessoas, cantar e dançar, virar cambalhotas.

No inicio de 2011, ano em que completaria cinco anos, notei que ele não tinha medo de nada, imaginei que fosse por causa da curiosidade, Adrian sempre foi muito corajoso. Mas também era muito sossegado, andava sempre atrás do pai, parecia imita-lo, mas era o seu jeito, muito parecido com o do seu pai. Aprendeu a andar de bicicleta, mas tinha dificuldades para usar o freio.

            Depois que completou cinco anos, a partir meio do ano em diante passou a ter um comportamento mais agitado, mais resistente a obedecer, mais teimoso. Ele não era assim, pensei que era por causa dos coleguinhas de escola e pensávamos que nas férias, por estar longe dos amiguinhos esquecer-se-ia de tudo e voltaria ao normal.

            A professora começou a mandar bilhetes reclamando que ele se arrastava pelo chão, cuspia, mordia as atividades, realizava tudo rápido e mal feito. Ao pedirem que ele repetisse a tarefa, não a fazia, as vezes rabiscava a tarefa. Após certo tempo ele já não me contava mais sobre os colegas, só reclamava que a professora brigava com ele. A sua compulsão por comida se iniciou; comia e bebia tudo o que via, o menino outrora muito higiênico já não lavava as mãos...

            Conhecia os numerais ate o vinte, todas as letras do alfabeto e todas as cores, mas todas as vezes que tinha tarefa para casa não se interessava em fazer. Acabou o ano, chegaram as férias; visando sua melhora busquei reeduca-lo através da conversa e até através do castigo. No final das férias ele parecia ter melhorado um pouquinho, pensamos que isso se devia ao afastamento de alguns de seus colegas.

            Agora ele estava no primeiro ano, alguns dos coleguinhas eram os mesmos, mas o Adrian não era mais o mesmo. Comportamento agitado, destruindo lápis, borracha, caderno, chegava a perder seu material escolar, além da perda do interesse em aprender. Eu e a professora trocávamos bilhetes toda semana, e o Adrian se tornava cada vez pior.

            O menino que brincava, falava e comia bem, agora estava cada vez mais calado, sozinho, aéreo, além de agitado e agressivo, não conseguia controlar seus impulsos. Pensei que era por ser tão mimado.

Abril

 Fomos ao pediatra, que disse que ele era apenas hiperativo, mas um menino saudável. Foi encaminhado para o Neurologista e psicólogo, que nunca estavam disponíveis por isso não aguentei esperar e procurei uma amiga, ela é psicóloga e se comprometeu a ajudar. Com a esperança de uma melhora, levava-o toda semana a psicóloga. Algumas coisas eu tive que mudar no tratamento dele, limita-lo sempre e trata-lo como hiperativo. Passaram-se três meses, e nada de melhoras... 

Passaram três meses e nada melhorou.

Percebi então que ele estava regredindo muito rápido. Não sabia mais as letras, foi esquecendo-se dos números, cores e tudo o que aprendera, também já havia perdido a noção das coisas, em relação à sujeira, vergonha e o perigo; não era nada fácil sair com ele. Um dia fomos ao zoológico, e num simples piscar de olhos o perdemos em meio às pessoas, encontramo-lo minutos depois em meio as árvores, totalmente distraído, nem sentiu a nossa falta, continuamos o passeio, mas agora com o cuidado redobrado.

Com o passar do tempo não ouvia mais os conselhos, não obedecia mais a ninguém, todos em casa estavam em pânico, pois não sabiam como agir em relação a tão drástica mudança no comportamento de Adrian. Para mim estava muito  claro que ele estava doente, porém ninguém acreditava. Apesar de tudo ele tentava nos recompensar com muitos, mas muitos beijos e abraços e “Eu te amo, você é linda mãe!”.

Agosto

Ainda não havia sido liberada a consulta com o neurologista e eu não aguentava mais, pois ele fazia cocô nas calças, se sujava todo e fazia xixi nas calças no caminho para a escola e estando lá não acompanhava as atividades; comia a borracha, lápis, deixava tudo bagunçado, se retirava com frequência das aulas, andava girando o corpo todo o tempo. Demorava em voltar e entrava em salas erradas.

Setembro

Desisti de fazer tarefas com o alfabeto móvel, ele sabia menos a cada dia, coçava a cabeça ficava sonolento cada vez que esforçava a memoria. Eu já ciente da regressão dele já não o mandava para a escola com frequência; a professora estava  muito preocupada com a situação dele, a pedagoga e a diretora o encaminharam para a fonoaudiologia, o que me deixou ainda mais preocupada.

Pedi ajuda a um assessor politico e ele me ajudou, peguei outra guia médica (já era a terceira) e em dois dias foi marcada a consulta com o neurologista. Pensei que era o fim do pesadelo, que tudo iria ser resolvido, imaginava que ele teria apenas algo reversivo, nada sério, na pior das hipóteses autismo.

Outubro

No dia 18 fui à consulta, entreguei o relatório escolar e contei como o Adrian era em casa. A doutora o examinou e em seguida ligou para alguém pedindo vaga para um paciente que colocava todos em sua casa em risco. Imaginei que ela falava de outro paciente, mas não, era o meu filho! Ele seria internado para realizar exames de tomografia, eletro, eco cardiograma e ressonância. No dia 19 passei o dia no Hospital Pequeno Príncipe, mas no horário marcado não havia vagas, ficamos das 06 horas da manhã até às 18 horas da tarde, durante esse tempo fiquei sem comer, e ele comeu algumas bolachas que levei, à noite depois da avaliação ganhou uma sopinha.

 Começaram a fazer os exames, ficamos 12 dias no hospital e todos os exames mostravam se normais. Entretanto no ultimo exame, a ressonância, apareceu uma mancha no cérebro. O Dr. Anderson e a Dra. Mara conversavam entre si e pediram para que eu os acompanhasse. Deram-me a noticia... Não era o que eu esperava, era pior, eu não sabia que podia existir uma doença tão grave.

O Adrian corria muito, falava pouco, não brincava mais nem sozinho, desorientado ele procurava fugir de si mesmo, procurando algo que nem ele sabia o que era, ainda assim cantava suas musicas favoritas como:  Sapo cururu, Borboletinha, Amar não é pecado do Luan Santana; sempre muito carinhoso, ele abraçava e beijava todos e todas as enfermeiras.

Fiquei sem chão, chamei o pai dele para ficar sabendo do que se tratava. Todos na família ficaram arrasados, a cada dia que se passava as suas limitações eram maiores.

Saímos do hospital, ainda existia uma esperança, a do transplante de medula óssea, a Dra. Mara Lucia providenciou tudo, assim que ficasse pronto o exame de sangue que confirmava a ALD[1] seria feito o transplante.

 

Novembro

No dia 22 voltamos para ver o resultado, ele já usava fraldas, não falava e nem cantava mais desde o dia 20 de outubro.

Já era tarde de mais para o transplante.

Dali em diante seus passos diminuíam, comia cada vez menos, suas pernas estavam enfraquecendo. Estava totalmente dependente  para tomar banho, se enxugar,  vestir suas roupas e comer; mas ainda assim beijava e abraçava.

Adrian começou a usar o Óleo de Lorenzo[2]  que a Linda (uma mãe) me fornecia, ele melhorou e firmou as pernas, também passou a deglutir e engolir melhor.

Janeiro

Passou o mês estável, os remédios o acalmavam e ele dormia bem a noite. No final do mês de fevereiro, depois de um longo tempo de regressão, Adrian já não engolia o alimento para manter a sua nutrição, ainda mantinha o peso de quatro meses atrás, cresceu um pouco mas aparentava estar magro demais. Amoleceu o pescoço, já não mantinha a cabeça equilibrada e em uma semana já não parava mais em pé.

Março

Dia 1° Adrian recebeu uma sonda enteral[3]. No dia 8 foi feita a primeira cirurgia para fazer gastrostomia[4]. Adrian não andava mais, quase não correspondia aos estímulos, se movimentava pouco, com a gastrotomia ele ganhou um quilo e meio em um mês. Ele fica pouco tempo sentado, mesmo com encosto, seus movimentos diminuíram muito. Os beijos e abraços cessaram desde fevereiro...

Ele gosta de segurar na mão, na roupa e de pegar nas nossas orelhas. As vezes ele ainda sorri, quando  brincamos com ele. E eu ainda não perdi a esperança...

Novembro

Estamos no finalzinho de 2013, dia 18.

O nosso Adrian perdeu todos os movimentos, está com os nervos atrofiados, braços, mãos e pés, não se movimenta na cama e não mais sorri. Tem grande dificuldade para evacuar, não tem forças para tossir; também necessita de fisioterapia respiratória, não interage de forma alguma. Não enxerga quando acorda, suas pupilas estão dilatadas, e possuímos dificuldades em fazer sua higiene bucal pelo fato do musculo da língua  trancar o canal respiratório.

 Filho, esta fazendo um ano que você já não me diz: “eu te amo mamãe, você é linda!”.

Estou com muitas saudades, mas não me canso de dizer que te amo meu filho, sem esperar nada em troca. Sessaram se os beijos e abraços, mas eu não me canso de te abraçar e beijar. Você é especial, vivemos intensamente cada instante de sua vida normal. Tudo me faz lembrar você, os animais, as flores, as frutas, enfim tudo o que você gostava. Nós todos sentimos muito a sua falta. Mas você esta aqui? Eu posso tocar você, cuidar, beijar, pegar no colo; se eu soubesse que você ficaria assim eu teria tido mais paciência. Tenho certeza que Deus quer me ensinar algo através da dor. Você é meu anjo que veio para mudar nossas vidas. A nossa dor é imensa, quase não podemos suportar.

Como eu queria mudar essa história; mas não posso só Deus pode... Logo ele me entregara aquele Adrian que me dava tanto orgulho. “Jesus volte logo!”

Eu almejo a cada instante ter meu filho curado, aquele Adrian que fazia todos sorrir, mas que agora faz todos chorar...

Mas ele continua lindo!



[1]  ALD é o acrônimo da Adrenoleucodistrofia, a doença acometida pelo Adrian.

[2] Óleo que se mostrou eficaz no tratamento da Adrenoleucodistrofia.

[3] Cânula inserida a partir do nariz até o estomago, visa a alimentação de pacientes incapacitados de alimentar por si mesmo.

[4] Gastrostomia é um procedimento cirúrgico para a fixação de uma sonda alimentar. Um orifício artificial é criado na altura do estômago para formar uma ligação direta do meio externo com o meio interno do paciente. A cirurgia é realizada em pacientes que perderam, temporária ou definitivamente, a capacidade de deglutir os alimentos.